Clodoaldo Dechecchi: As chuteiras e lesões de joelho dos atletas

Campinas, SP, 27 (AFI) – A freqüente incidência das lesões de joelho em jogadores do futebol no Brasil, especificamente o rompimento do ligamento cruzado anterior (LCA), tornou-se, nos momentos atuais, sinônimo de grande preocupação por parte de médicos, fisioterapêutas, fisiologistas e preparadores físicos dos clubes, voltando novamente à tona uma questão importante: existe alguma relação (direta ou indireta) das chuteiras utilizadas pelos atletas em treinos e jogos no processo lesivo do joelho? Este artigo tem como objetivo colocar em pauta considerações de alguns importantes personagens do âmbito futebolístico para maior reflexão sobre a complexidade do assunto.

Conhecendo as chuteiras atuais!
Atualmente existem infinitos modelos e marcas de chuteiras de futebol, diferenciadas pelo material, conforto, resistência, design, praticidade, leveza, amortecimento, especificidade funcional quanto à posição tática de jogo e para determinadas condições ambientais ou climáticas, características do solado, dentre muitas outras, enfim, uma verdadeira evolução tecnológica e científica comparadas com as chuteiras das primeiras décadas à época de origem do futebol no Brasil. O solado da chuteira, caracterizado pelo tipo e pela quantidade das travas tem sido o foco atual de muitos especialistas na relação de sua funcionalidade com as lesões de joelho dos jogadores.

De uma maneira geral, atualmente existem três espécies importantes quanto às características das travas das chuteiras: 1. trava de pino ou trava arredondada, que proporciona facilidade importante de giro do pé que está apoiado sobre o gramado, no momento de estabilização, ação motora de mudança de direção ou deslocamento; 2. trava longitudinal ou trava quadrada ou trava retangular (também conhecida no ambiente futebolístico como “dente de tubarão” ou ainda, “barbatana de tubarão”, pelo formato característico das travas), c) trava mista, uma composição contendo os dois tipos de travas destacados anteriormente, colocados em pontos estratégicos da sola da chuteira. Vale observar que o número de travas existentes variam em conformidade com os modelos e tipos dos fabricantes.

As demanças físicas mudaram
O futebol tem sofrido muitas mudanças nos últimos anos, principalmente em função das exigências físicas cada vez maiores, o que obrigam os atletas a trabalharem perto de seus limites máximos de exaustão, com maior predisposição às lesões. Mudanças de direção repentinas, giros velozes, maior potência de aceleração, distância total percorrido no jogo próxima a 12 km (bem diferente dos 5 km de décadas atrás) e ritmo mais intenso de jogo são algumas considerações e fatos importantes. No Brasil, tem sido difícil atingir um ponto de equilíbrio entre o preparo e exigências ao atleta. Por um lado, temos o avanço da medicina desportiva, levando ao melhor conhecimento da fisiologia do esforço e permitindo protocolos específicos para cada atleta, de acordo com suas características e especificidades. Em contrapartida, temos o excesso de jogos e treinamentos, que colocam o atleta nos limites de ocorrência de lesões musculares e osteoarticulares. Os movimentos realizados no futebol são muito variados, exigindo, em média, mudanças inesperadas a cada seis segundos. Ekstrand & Nigg (1989) associaram as lesões no futebol ao uso de calçados inadequados, bem como ao tipo de gramado ou solo utilizado (Cohen e colaboradores, 1997).

A visão dos especialistas
Muitos especialistas relatam parecer importante sobre o grau de participação das chuteiras nas lesões de joelho dos jogadores de futebol.Para o Dr. René Jorge Abdalla, renomado ortopedista do Hospital do Coração – HCor (2007), o rompimento do ligamento cruzado anterior de joelho (LCA) pode ter influência de muitos fatores como chuteiras, condições do gramado, excesso de treino e fadiga muscular, pelo fato do futebol atual estar mais competitivo e vigoroso que no futebol do passado. Os solados das chuteiras não tem mais aquela série de pinos, e sim travas achatadas dispostas de maneira longitudinal, que prendem o pé do jogador ao chão em determinadas circunstâncias, podendo facilitar a ocorrência de entorses. Também relata um detalhe importante: “além das chuteiras ‘dente de tubarão’, que foram comprovadas cientificamente por serem uma das causas das lesões dos atletas, temos que observar ainda os gramados (se tiverem muito seco, maior o risco de lesões), o excesso de treino também pode causar fadiga muscular, além da idade dos jogadores. Os jogadores lesionados possuem idade entre 18 e 24 anos (fase em que mais ocorrem as lesões de ligamento cruzado do joelho), já com os atletas acima de 25 anos, este tipo de lesão não é tão comum”. Os traumas mais freqüentes que promovem lesão do ligamento cruzado anterior (LCA) são as torções e “choques” direto contra o joelho e durante práticas esportivas, o joelho é forçado a uma posição anormal resultando em ruptura de um ou mais ligamentos. Na maioria desses casos, o atleta sente uma sensação de “falseio”, como se o joelho saísse do lugar, acompanhado por um estalo. O trauma é associado a inchaço, dor e incapacidade de continuar jogando. Após algumas horas o joelho aumenta de volume (líquido intra-articular) e a marcha se torna dificultada. Esses sintomas são piores nos dois primeiros dias regredindo progressivamente. Estudo de Cohen e colaboradores (1997) revela que a maior incidência de lesões no futebol profissional do Brasil ocorrem em jogadores com idade média de 22,4 anos, em posições táticas de meio-campo e ataque, em membros inferiores e em traumas sem contato físico.

Dr. Joaquim Grava, importante especialista em lesões de ligamentos e fraturas, durante sua participação em destacado programa esportivo de TV (Arena Sportv; janeiro/2007) enfatizou as chuteiras, o aquecimento inadequado e a inexperiência profissional do jogador no evento da lesão de joelho, cuja ocorrência no âmbito do futebol vem crescendo cada vez mais desde 1998. “Geralmente o atleta se lesiona sozinho, a grande maioria são traumas indiretos onde o pé do jogador se prende no gramado, ocorrendo uma rotação do joelho. Existe uma incidência no mundo de que a lesão se dá no começo ou no final do jogo, ou quando o jogador não está adequadamente aquecido e a musculatura não está potencialmente ativada, ao qual interfere na velocidade de reação do jogador e nas respostas à estímulos mais rápidos no jogo. Os jogadores não estão se aquecendo corretamente”. Para exemplificar sua teoria, ele recorre a um estudo que está fazendo e que mostra que a maioria dessas lesões se dá no início de cada tempo do jogo: “a lesão de ligamento cruzado vem aumentando cada vez mais. A maioria acontece antes dos dez minutos do primeiro tempo, ou no final desta etapa, ou nos dez primeiros minutos da etapa complementar. Mal-aquecido, o jogador entra numa estafa e não consegue manter o que nós chamamos de “reação da coxa” para segurar o joelho.

Grava também destacou que a maioria das lesões do LCA ocorre em jogadores na faixa etária de 18 a 24 anos e dificilmente a lesão de dá em jogadores mais experientes: “as chuteiras de trava de pino arredondadas (mais antigas) biomecanicamente conseguem girar 1 (um) milímetro quando o pé está apoiado, poupando desta forma qualquer prejuízo ao ligamento. Por outro lado, as chuteiras com trava longitudinal provoca maior fixação do pé apoiado, impedindo seu giro na ação seguinte de movimento, e isto não é bom, pois desencadeia sobrecarga articular. A maioria dos jogadores com lesão do ligamento cruzado utilizavam as chuteiras de trava longitudinal. Pode existir lesão com as chuteiras de trava arredondada, mas não com está incidência. Tanta ocorrência da lesão do LCA não pode ser comparada à fatalidade (fatalidade é o mesmo que ser assaltado uma vez na avenida Rebouças em São Paulo, mas trezes vezes deixa de ser considerado fatalidade). Hoje se fortalece as estruturas que suportam o joelho e a manutenção muscular é importante pelo excesso da atividade física provocada pelos jogos, assim é utilizado o aparelho isocinético”. Em entrevista às revistas “Época” e “Isto É”, Grava relatou: “as chuteiras modernas, de todos os fabricantes, possuem travas bem mais longas do que as antigas. Elas entram fundo no gramado e muitas vezes travam a perna do jogador”.

O renomado e gabaritado jornalista Armando Nogueira, em um importante programa esportivo de TV (Redação Sportv; janeiro/2007) confidenciou depoimento importante do fisiologista Turíbio Leite de Barros, informando que o São Paulo F.C., através de muitos estudos e observações do departamento de futebol e de fisiologia do clube, já faz algum tempo que orienta seus jogadores a utilizarem somente as chuteiras de trava arredondada (trava de pino). Armando Nogueira destacou que, apesar das chuteiras modernas serem confeccionadas com rigor científico, as emprêsas fabricantes tem a necessidade e devem trazer uma palavra sobre o assunto ao mundo esportivo.

O médico esportivo Dr. José Luiz Runco, um dos grandes expoentes da área, em depoimento ao referido programa esportivo (Redação Sportv; janeiro/2007) destacou que, felizmente, a evolução da medicina esportiva tem permitido o retorno à atividade normal do jogador de futebol nos gramados esportivos, após tratamento e recuperação da lesão de joelho. Entretanto, José Luiz Runco não acredita que o equipamento seja o causador de alguns tipos de lesões: “pode ser que seja a quantidade de jogos, o desgaste físico, considerando-se que o ritmo de jogo no futebol atual é muito intenso. Acho muito difícil que a culpa seja dos gramados, porque temos visto muitas lesões na Europa, também, e lá os gramados são tapetes. Também acho difícil que a culpa seja das chuteiras, que são muito modernas e leves, hoje em dia. Acho que o problema é mesmo a intensidade dos jogos”.

Em 2007, o médico da Sociedade Esportiva Palmeiras, Dr. Vinicius Martins, devido a ocorrência de muitas lesões de joelho dos jogadores palmeirenses, fez a seguinte ressalva quanto ao tipo de chuteiras produzidas pelos fornecedores de materiais esportivos em geral: “aquelas com travas longitudinais são ruins. Elas fixam o pé do jogador no campo e o atleta não consegue girar. A força de tração está sendo maior do que o ligamento (do joelho) pode agüentar”.

Também em 2007, o médico do Cruzeiro, Dr. Sérgio Freire Júnior, destacou que não vê relação entre o aumento das lesões no futebol, principalmente de joelho, com a evolução das chuteiras. Apesar de serem mais leves, os novos calçados tem travas questionadas quanto à eficiência e à possibilidade de torções. Os estudos sobre as travas não são conclusivos: “não existe informação do ponto de vista biomecânico em que se pode afirmar que a chuteira é a causa da lesão. A gente da parte médica é muito cauteloso com relação a isso, pois nos baseamos em informações concretas, não em suposições. No Cruzeiro, não há restrição alguma quanto ao tipo de travas (quadradas, longitudinais, dentre outras). O uso vai de acordo com a preferência ou contrato firmado pelos atletas com as fabricantes. É uma questão dúbia, porque há estudos que vão contra determinado tipo de chuteira e há estudos que não vêem relação entre as chuteiras e as lesões. A informação não é precisa”. O Dr. Sérgio Freire acredita que o aumento das lesões pode sim estar relacionado com a evolução física do esporte: “esse talvez seja o principal fator para o aumento das lesões. Hoje o jogador é mais forte e o impacto sobre os joelho é maior, os movimentos são mais fortes e bruscos”.

Treinador vetou uso da chuteira de trava longitudinal
Émerson Leão, técnico de ponta do futebol brasileiro, quando treinador do Clube Atlético Mineiro, em fevereiro de 2009, mencionou a seguinte frase em uma entrevista coletiva à imprensa esportiva, referindo-se à incidência de lesão do ligamento cruzado: “eu nunca vi estourar tanto ligamento cruzado como está estourando. Sempre critiquei esses novos materiais esportivos, as chuteiras. Jovens jogadores já começam a profissão sofrendo um trauma muito grande, que é uma cirurgia delicada”. O treinador lembrou que não é especialista no assunto, mas reclama que as chuteiras são muito leves e flexíveis, diferentes das que ele usava na época em que era jogador. Ele enfatiza também o fato de que os jogadores estão mais fortes.

Para Leão, as travas são as grandes vilãs dos joelhos: “eu não usaria chuteira que não tivesse trava redonda, pois esse modelo gira conforme seu corpo. Já as travas retangulares não giram, o que vai girar é o ligamento e a faca no joelho”. O treinador também destacou que clubes do exterior já proíbem certos tipos de chuteiras: “eu sou um crítico, mas sou meio que uma voz sozinha. No exterior, alguns grandes clubes depois de cinco, seis cirurgias de ligamento cruzado, proibiram certas chuteiras, porque os atletas representam, antes de mais nada, a felicidade do torcedor e o patrimônio do clube. Não se pode perder por uma simples vaidade de cor ou de guerra por propaganda”.

Fabricantes defendem as chuteiras
Em 05/03/2007, as empresas fabricantes de chuteiras publicaram um comunicado de esclarecimento à imprensa esportiva: a Nike e a Adidas, que fabricaram as chuteiras usadas por muitos jogadores lesionados naquele ano, soltaram notas comentando a possibilidade de seus equipamentos estarem prejudicando atletas. A Nike não comentou especulações: “informamos que nossas chuteiras são desenvolvidas a partir de informações dos atletas e, antes de chegarem ao mercado, são submetidas a exaustivos testes para que possam colaborar para desempenho dos jogadores em campo”. Já a Adidas citou até pesquisa feita por um médico alemão: “as travas TRAXION, presentes no modelo Predator da Adidas, existem desde 1995 e são utilizadas por jogadores como Kaká, Michael Ballack, David Beckham, Zinedine Zidane, entre outros. Um estudo independente realizado em 2006, na Alemanha, pelo Dr. Albert Gollhofer, do Instituto de Ciências do Esporte da University of Freiburg, concluiu que as travas Traxion exercem menos pressão sobre os ligamentos do tornozelo e do joelho do que outros seis tipos de travas estudadas, oferecendo proteção adicional ao atleta”.

Considerações finais
Muitos especialistas julgam haver algum relacionamento relevante da participação das chuteiras com a incidência freqüente das lesões do ligamento cruzado dos jogadores de futebol, em treinos e nos jogos. Outros, por sua vez, observam a necessidade de maiores estudos científicos comprobatórios sobre o assunto, destacando que as demandas físicas dos jogadores e as intensidades dos jogos são muito mais potencializados nos dias atuais, comparadas às décadas passadas. Mas um fato chama a atenção: qual o valor do ônus de uma lesão de joelho? Os dirigentes dos clubes fazem os cálculos. Para se ter uma noção da gravidade do tema, um atleta de clube de ponta do futebol brasileiro, ao sofrer este processo lesivo, com cirurgia, tratamento e recuperação, poderá se ausentar dos gramados por um período que vai de 6 (seis) a 8 (oito) meses, de acordo com a evolução e resposta recuperativa do jogador (segundo os especialistas da área médica). Isto proporcionará um passivo ao clube, podendo chegar próximo ou até ultrapassar a cifra de um milhão de reais por lesão, dependendo do padrão salarial do atleta, sem contar a preocupação quanto à continuidade da carreira do jogador, que ficará inativo por um período muito longo.

Desta forma, uma discussão no âmbito esportivo nacional, com a participação dos profissionais da área médica, fisioterapeutica, da fisiologia e da preparação física, e também com a presença dos representantes dos fabricantes de chuteiras, é apreciada como necessária, providencial e fundamental para se buscar a minimização das incidências de tais lesões, na tentativa de oferecer maior segurança, confiabilidade e bem estar ao jogador de futebol durante a execução da sua atividade profissional.