1968 e os da Folha da Tarde

Um relato fantástico da redação da Folha da Tarde, uma mistura de estudantes e aprendizes de jornalista, que queriam mostrar a sua rebeldia em plena ditadura

Folha da Tarde foi um jornal vespertino da Folha da Manhã e distribuído em São Paulo entre os anos de 1949 e 1959 e entre 1967 e 1999

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Fotos de Tânia Brandão e Cícero Bucci

Por ALBINO CASTRO  

 

São Paulo, SP, 23 (AFI) – Os nossos 20 anos de chumbo (1964 – 1984) foram temas de inúmeros livros, na década de 1980, no final da ditadura, denunciando o regime militar que causou a prisão e exílio de centenas de opositores. Uma das melhores obras sobre aqueles tempos sombrios foi escrita pelo jornalista Zuenir Ventura, de 91 anos, nascido na localidade mineira de Além Paraíba, e teve como título:

“1968: o Ano Que não Terminou”.

Foi publicado em 1989 e exalta a revolução de costumes que aconteceria, a partir de 1968, em todo o Ocidente. A palavra de ordem, em Paris, bem como no Rio de Janeiro e em São Paulo, era, simplesmente:
“É proibido proibir”

Era propagada aqui pela Tropicália de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Manifestações estudantis tomaram, primeiro, as ruas de Paris, em maio, contaminando o celebrado Quartier Latin, berço da Sorbonne – mais reverenciada das universidades da Europa.

PRINCIPAIS METRÓPOLES
Estendeu-se, em poucos dias, às duas principais metrópoles italianas, Roma e Milão, nas quais os jovens passaram a enfrentar armados a repressão – marcando o estopim da guerrilha urbana no país. Surgiram, assim, as temíveis Brigadas Vermelhas.

Movimento semelhante explodiu em várias cidades da Alemanha Ocidental e fortaleceu a formação do grupo terrorista Baader-Meinhof. Também a comunista Praga, capital da Checoslováquia, se levantou contra a União Soviética, mas sua “Primavera” duraria apenas alguns meses – esmagada pelos tanques enviados de Moscou.

A insurreição chegaria à Cidade do México – sede dos Jogos Olímpicos daquele ano. Milhares de estudantes, diante da Catedral da Virgem de Guadalupe, em “El Zócalo”, como é conhecida a Plaza de la Constitución, desafiaram as forças policiais – e muitos foram mortos.  

NO BRASIL DA DITADURA

O rastilho de pólvora alcançaria o Brasil, apesar do regime militar, e incendiaria o Rio de Janeiro e São Paulo – justamente onde eu me encontrava desde os primeiros dias do mágico e contestador 1968, tentando compatibilizar a vida de estudante com a de repórter da Editoria de Esportes da Folha da Tarde, cotidiano progressista ligado ao Grupo Folhas.

O vespertino da Rua Barão de Limeira, no centro de São Paulo, foi um dos símbolos da revolta. Éramos, quase todos, uma mistura de estudantes e aprendizes de jornalista. Buscávamos notícias que pudessem, mesmo no esporte, mostrar a nossa rebeldia.

O diário era dirigido pelo baiano Miranda Jordão (1932 – 2020), um dos mais respeitados chefes da lendária Última Hora, de Samuel Wainer (1910 – 1980), com circulação própria no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife.

Mas, depois do golpe de 1964, teve que “vender” seus jornais e Miranda Jordão veio fazer a Folha da Tarde – lançada em 19 de outubro de 1967. Ele acabou por criar, aqui, uma nova versão da Última Hora, igualmente, rebelde e esquerdista, porém sem o nome do matutino de Wainer.

“Éramos felizes e sabíamos”, declarou Miranda Jordão no prefácio do livro “Os Meninos da Folha da Tarde”, publicado em 2011, no qual, com muito orgulho, fui um dos autores. Juntamente com Edgard Soares, Celso Brandão, Miguel Arcanjo Terra, Flávio Adauto, Juarez Soares, Hermínio Naddeo e Ítalo Neves. A obra prometia contar, conforme anunciava na capa, abaixo do título, como aqueles meninos revolucionaram o jornalismo esportivo paulista.  

A redação da Folha da Tarde, improvisada em meio aos serviços de classificados da Folhona, no primeiro andar, era bastante desajeitada e acanhada. Sem janelas e paredes – somente baias de madeira. Ouvia-se, ali, quase sempre, o barulho das velozes e então moderníssimas rotativas em off set instaladas no piso de baixo, no térreo – no mesmo local em que ainda hoje a Folha de S. Paulo é impressa. O jornal circulava de segunda a sexta-feira – como era a tradição dos vespertinos.

“A Folha da Tarde foi uma resposta mercadológica do Grupo Folha, comandado por Octávio Frias de Oliveira, pai, e seu sócio, Carlos Caldeira Filho, ao Grupo O Estado de S. Paulo, o mais forte e prestigiado órgão da imprensa paulista em meados dos anos 1960” – escreveu  um dos jovens repórteres, Edgard Soares, meu amigo, no preâmbulo de “Os Meninos da Folha da Tarde”.

O Editor de Esportes era Celso Brandão, um homem sofisticado, de apenas 28 anos, autor de uma cuidadosa coluna diária, que mesclava, com raro brilho, notícias, bastidores e análises dos jogos. Tinha como braço direito o Miguel Arcanjo Terra, o super Terra, responsável por manchetes memoráveis e pelos esmerados e irrequietos textos das páginas esportivas.

“Trabalhar na Folha da Tarde foi minha melhor e mais rica experiência jornalística”, confessou na contracapa da obra o chefe de reportagem, Carlos Alberto Libânio Christo, nome completo do dominicano Frei Betto, que se tornaria um dos assessores próximos do ex-Presidente Luis Inácio Lula da Silva.   

Era, naturalmente, proibido proibir. E, imbuídos desse slogan, sem lenço e sem documento, saíamos, diariamente, à caça de grandes novidades para as nossas manchetes – e as disputadíssimas chamadas na primeira página. Foi naquela redação que surgiria, por exemplo, a maior torcida organizada do País, a corintiana “Gaviões da Fiel”, incentivada pelo mesmo Edgard Soares, ilustríssimo adepto do Corinthians – e há anos, juntamente com Flávio Adauto, outro dos meninos, conselheiros vitalícios do clube.

Ganhou corpo também, nas imediações do jornal, nas mesas do Restaurante 308, à Alameda Barão de Campinas, no fundo das Folhas, a dura oposição ao presidente do Corinthians, Wadih Helou, promovida ainda por Edgard Soares – e que levaria, anos mais tarde, à consolidação da denominada “Democracia Corinthiana”.

QUEBRA DE TABU

Foi no mesmíssimo ano de 1968, pela mesma Folha da Tarde, que eu e os meninos, empolgados, até quem não era corintiano, cobrimos, numa noite de quarta-feira, no Pacaembu, a quebra do tabu de 12 anos do clube do Parque São Jorge contra o Santos por 2 a 0. Um jogão e muita festa pela façanha de vencer o poderoso time do Pelé.

Acreditamos que a chave do sucesso estava no banco de reservas – precisamente na figura do treinador Luis Alonso Pérez (1922 – 1972), o Lula. Fora o técnico dos anos de ouro do Santos e havia sido contratado por Helou para acalmar a torcida e a oposição dos conselheiros. 

A vitória corintiana foi muito comemorada, como disse, na própria Folha da Tarde, porém, os meninos não deram trégua aos desmandos autoritários da presidência do clube e aos conflitos entre os jogadores. Eu mesmo produziria uma bombástica matéria que redundaria numa histórica manchete: “LOURO ACUSA” – em caixa bem alta, na contracapa do jornal, seguida de uma ‘linha fina’, onde estava estampado: “Édson e Rivelino sabotam os novos”.

A reportagem reunia um exclusivo depoimento do promissor lateral-direito Louro (1946 – 2005), contratado ao Fortaleza, no qual denunciava dois veteranos, o carioca Édson, vindo dois anos antes do Bonsucesso, e o paulistano Rivelino. Estes estariam boicotando, para além do cearense, os atacantes Paulo Borges (1944 – 2011), Buião, de 76 anos, e Eduardo (1943 – 1969), trazidos, respectivamente, do Bangu, Atlético Mineiro e América do Rio.

Eu tinha uma fonte especial no elenco do Corinthians – e foi ele quem me disse que Louro estava descontente e precisava desabafar. Fui conversar com ele e obtive a confirmação. O meu trabalho foi convencê-lo a assumir publicamente as acusações. Consegui, mediante um acordo de que, para se defender dentro do clube, ele negaria alguns itens. 

Contudo, acabou deixando o Parque São Jorge e prosseguiu a carreira no seu Fortaleza, sempre com êxito, passando também pelos pernambucanos Santa Cruz e Sport. Quanto à fonte, mesmo decorridos 54 anos, não revelarei o nome. Ele era titular da equipe e sabia o que estava acontecendo no meio dos jogadores, numa época na qual o Corinthians montava verdadeiros timões , entretanto, não ganhava título.

 

Foi um ano que não terminou, para Zuenir Ventura, mas, infelizmente, assinalaria o fim precoce daquela irreverente e ousada Folha da Tarde de Miranda Jordão e dos meninos da Editoria de Esportes do Celso Brandão. Transformou-se rapidamente em um jornal policialesco e abertamente a favor do regime militar.  

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