A pátria das chuteiras imortais de Nélson Rodrigues

Acima de tudo, um torcedor visceral do Fluminense

A pátria das chuteiras imortais de Nélson Rodrigues
Foto: Reprodução/ Acervo / Projeto Brasil Memória das Artes

Ele foi, acima de tudo, torcedor visceral do Fluminense. Pernambucano de Recife, mas carioquíssimo da gema, marca indelével de sua vasta obra, Nélson Rodrigues (1912 – 1980), um dos maiores dramaturgos de língua portuguesa, foi levado, aos quatro anos de idade, pelos pais, ao Rio de Janeiro. Criou-se na Rua Alegre, no bairro de Aldeia Campista, entre a Vila Isabel e o Andaraí, próximo à Avenida Maracanã, na Zona Norte do antigo Distrito Federal. Mas passaria boa parte da vida em Copacabana, cartão postal da Zona Sul, mais precisamente no Leme. Costumava dizer que se sentia tão carioca, tão carioca mesmo, que, quando chegava ao Méier, na Zona Norte, já começava a ter saudades do Rio de Janeiro. Nélson Rodrigues foi profundamente revolucionário no teatro e sua peç ;a “Vestido de Noiva”, marco do realismo e do modernismo, encenada pela primeira vez em 1943, é considerada a maior transgressão dos palcos nacionais. Foi ainda um esplêndido cronista. Teve duas célebres colunas: “A Vida como ela é”, relatando dramas e crimes da sociedade do Rio de Janeiro, na combativa “Última Hora”, e “À Sombra das Chuteiras Imortais”, focada na sua grande paixão, o futebol, publicada em diferentes momentos na própria “Última Hora”, “Jornal dos Sports”, de seu irmão Mário Filho (1908 – 1966), na revista “Manchete Esportiva” e em “O Globo”.  

Quando voltei a “O Globo”, em 1974, como redator, surpreendi-me ao saber que teria a honra de compartilhar a mesma mesa e máquina de escrever, todos os dias, com o lendário Nélson Rodrigues. Eu estava vindo da revista “Manchete”, depois de ter passado pela reportagem do próprio “O Globo”, em 1971, e, no ano seguinte, pela Rio Gráfica Editora, atual Editora Globo. Era, então, um jovem de 25 anos e não passava pela minha cabeça tornar-me um personagem frequente nas suas crônicas. Era citado, invariavelmente, como um dos torcedores símbolos do Flamengo – muitas vezes junto a outro rubro-negro, Fernando Calazans, também redator. Ganhei, rapidamente, a incumbência de informá-lo sobre o placar dos jogos do Fluminense, porque estava proibido, pelo cardiologista, de ac ompanhar as partidas ao vivo, por risco de sofrer um ataque do coração. Telefonava-me sempre, quase ao final do segundo tempo, e pedia: “Conte-me tudo!”. Eu exclamava: “Esmagamos!!!” – ainda que o resultado fosse um mísero 1 x 0 diante do Olaria.  

Minha jornada como copydesk iniciava às 17 horas – quando se supunha que Nélson Rodrigues já teria concluído a coluna e estaria chamando o motorista para levá-lo ao Leme. Gostava, contudo, de permanecer na redação à espera dos repórteres que voltavam das Laranjeiras com as novidades do Fluminense. E ali começamos a ficar amigos. Eram os gloriosos tempos da Máquina Tricolor do Presidente Francisco Horta – atualmente com 87 anos. Um deles era Marcelo Rezende (1951 – 2017), também adepto do Flamengo, porém, o que mais conseguia trazer notícias em primeira mão sobre as decisões de Horta e do troca-troca de jogadores. Rezende era, igualmente, um dos personagens da coluna de Nélson Rodrigues e se transformaria, a partir da década de 1990, nu m dos principais repórteres policiais da Rede Globo de Televisão – enquanto eu construía uma carreira na direção de Jornalismo do SBT.  

Conquistei definitivamente a amizade de Nélson Rodrigues quando ele, de supetão, me perguntou se eu conhecia a obra literária do irmão Mário Filho – que já dava nome ao Maracanã. Respondi-lhe que tinha lido vários livros dele, mas admirava, sobretudo, o fabuloso “A Copa Rio Branco de 1932”… Você leu mesmo esse livro? – questionou-me, insistentemente… Sim! E fui capaz de citar de memória trechos do texto épico de Mário Filho sobre o primeiro título da Seleção Brasileira no exterior, justamente contra o tricampeão mundial Uruguai, por 2 a 1, no Estádio Centenário, de Montevidéu – numa competição que envolvia, em anos alternados, o confronto entre Brasil e a mítica Celeste Olímpica. As estrelas d aquele jogo foram Domingos da Guia (1912 – 2000), do Bangu, e Leônidas da Silva (1913 – 2004), do Bonsucesso. Estes acabariam sendo contratados, respectivamente, pelos clubes uruguaios Nacional e Peñarol.  

E aí foi minha vez de perguntar… E Domingos da Guia foi tão grande como dizem? Ele respondeu de forma bem sucinta e objetiva: “Foi tão grande, embora zagueiro, quanto Pelé… Com isso respondi a você?” Claro que sim. E até hoje, incluo Domingos da Guia, “O Divino Mestre”, como zagueiro central na minha seleção mundial de todos os tempos, pelo testemunho de Nelson Rodrigues, mesmo não o tendo visto jogar. Desde então me acostumei a lhe perguntar sobre os craques do passado. Um dos que me despertava curiosidade era o indomável Heleno de Freitas (1920 – 1959), centroavante apaixonado pelo Botafogo, entretanto, campeão unicamente no “Expresso da Vitória” do Vasco da Gama, em 1949 – ano em que nasci. Estava no Boca Juniors, em 1948, quando o Botafogo foi campeão carioca. Fez muito sucesso também na “Liga Pirata” da Colômbia, atuando pelo Juniors, de Barranquilla, ao lado de outro brasileiro, Elba de Pádua Lima (1915 – 1984), o Tim, “El Peón”. O mais legendário dos times da “Liga Pirata”, porém, era o fascinante Millonarios, de Bogotá, no qual brilhavam azes argentinos, dentre os quais, o goleiro Cozzi, o médio-volante Nestor Rossi e os atacantes Reyes, Di Stefano, Pedernera e Mouriño. Disse-me que Heleno e Leônidas da Silva foram os maiores centroavantes do Brasil. Lamentava, que, por ironia do destino, só o ‘raçudo’ pernambucano Vavá, do Vasco da Gama, fora campeão do mundo (1958 e 1962). E arrematava: “Heleno era tão maldito que nem pelo seu Botafogo foi campeão”. 

Copa do Mundo era sagrada para ele. Imagino que, se vivo fosse, estaria desgostoso com nossa falta de animação. A Seleção Brasileira inspira hoje muito mais indiferença do que expectativa em relação ao Mundial, programado para novembro e dezembro, logo depois das eleições presidenciais – estas, sim, cercadas de grande ansiedade em todo o País. Nossa indiferença, inclusive a minha, é causada, provavelmente, por dois fatores. O primeiro, sem dúvida, é a ausência de verdadeiros craques. Contamos somente com Neymar, e algumas promessas, entre as quais, Vinicius Junior, revelado pelo Flamengo, e Rodrygo, saído das categorias de base do Santos, ambos atuando no poderoso Real Madrid. As maiores estrelas do futebol, hoje, são majoritariamente estrangeiras. Como o portug uês Cristiano Ronaldo, o argentino Messi, o francês Mbappé, o polonês Lewandowski, o egípcio Salah, o belga De Bruyne e o senegalês Mané. Outro fator é a constatação de que, mesmo sendo uma safra nacional apenas ‘mediana’, raros são os titulares a disputar o Campeonato Brasileiro. É evidente que nem sempre fomos assim. A frieza de nossos dias contrasta com a euforia que reinava em toda parte nos anos de Copa do Mundo. A pátria calçava chuteiras, literalmente, às vésperas do Mundial – desde 1950. Expressão, aliás, cunhada por Nelson Rodrigues, incorrigível torcedor do escrete canarinho. E eu, influenciado por ele, passei a gostar também do Fluminense.  

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